terça-feira, 24 de abril de 2012

Comemorar o 25 de Abril

https://www.smashwords.com/books/view/22439

A IDADE DO GALO, o meu primeiro romance,  está publicado, em formato digital na editora americana Smashwords.
Alguns excertos podem ser lidos neste blog, a que não tenho dado a mínima atenção, mas em que gostaria que escrevessem.
A história, contada em 600 páginas, mergulha na luta pela libertação dos animais e acaba com um galo eleito presidente da república e com os humanos mascarados de cães, gatos e perus, vivendo de curadorias cívicas pagas pelo erário público.
Nunca me senti tão próximo dessa realidade.
Por isso, para comemorar o 25 de Abril, neste ano de 2012, aqui deixo um voucher, para que possam fazer download do livro gratuitamente, para vocês próprios ou para os vossos amigos.
O voucher é válido até ao dia 24 de maio.


Generating coupon code for A Idade do Galo

Your coupon code is KV34H (not case-sensitive).
Please share this code with prospective customers on your fan email lists, your blog or website, your social networks, or in your press releases and other promotions.
Customers enter the code prior to completing their checkout. You can cancel this coupon at any time, or issue additional coupons, by returning to the Coupon Manager.
Promotional price: $0.00
Coupon Code: KV34H
Expires: May 24, 2012

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Corrupção

A corrupção é talvez uma coisa animal, que se desenvolve com a mesma regra do desenvolvimento das espécies. Por isso mesmo é tão natural como as próprias espécies, onde as famílias se protegem como devem proteger-se.
Foi desfiando casos sobre casos, como se estivesse a demonstrar um teorema. E na realidade, ao menos no que ela ia contando, tudo batia certo.
Foi esse o tema da cavaqueira daquela noite, em que todos acabaram por se irmanar, para grande conforto de Ricardo. Mal ficaria que o cronista não deixasse aqui os momentos mais sublimes da reflexão.
Só os políticos da oposição é que falam de corrupção. Quando o partido conservador está no governo, é o partido republicano quem acusa os conservadores; quando está no poder o partido republicano, assanham-se os conservadores a acusar os republicanos. A corrupção funciona como o mal de inveja e tem uma sanha de tal modo forte que os acusadores parece que perderam a memória de si próprios.
A dona Manuela Chinchinim, que foi presidente de câmara de Algerondim durante doze anos, era empregada de escritório quando entrou para a política. Tem a quarta classe e andava de bicicleta nesse tempo. Usava uma trança bonita, mais por economia, porque não precisava de ir à cabeleireira, do que por razões estética e mal foi eleita para a junta, cortou-a, ofereceu-a à senhora da Agonia, que segundo ela a ajudou nas eleições, onde os santos, na opinião dela, são muito importantes. Vivia na aldeia de Gerondim, a uns cinco quilómetros da vila de Algerondim, onde se situava a câmara. Os pais eram pobres e velhos, mas a cachopa era bonita e inteligente, mesmo antes do dia em que o senhor Joaquim Camelo, dono do maior armazém de distribuição de Roxo do Alto, que vendia tudo, desde adubos a urnas funerárias, foi a Gerondim, porque lhe tinha faltado um empregado e teve que ser ele próprio a fazer o funeral do Manuel António, um pobre homem, que morreu com três cirroses e quarenta e três anos, tendo deixado sete filhos, todos com menos de doze anos. A Manuela, que era catequista, foi escalada para ir atrás do caixão com os garotos imediatamente após a viúva, que gritava como uma desalmada, oh Manel, como vai ser a nossa vida agora, porque nos deixas Manel? E agora Manel, o que vai ser de mim com sete filhos, Manel?. Não podias fazer isto Manel, valha-me nosso senhor Jesus Cristo Manel – gritava a Isaura, do fundo dos pulmões, como se uma mão invisível a estivesse a vergastar. De vez em quando, Manuela lançava uma lágrima e olhava para o senhor Joaquim Camelo, que lhe retribuía com um olhar embevecido. Para ela, ele era o homem rico, que representava ali, verdadeiramente, o poder. Não fora ele e quem é que fiaria a urna àqueles desgraçados? Que vergonha havia de ser para os miúdos, que estão habituados a ir a funerais, vão a todos, sobretudo aos dos ricos, como na época iam todas as crianças, e já tinham idade para apreciar o facto de na, na hora da morte, tudo ser muito bonito, luzidio, com verniz e com asas que deviam ser caras, uma preciosidade de tal ordem que não as enterravam, havendo o cuidado de as desaparafusar de cada vez, para que pudessem passar de uns para os outros e para que todos pudessem fruir, na última hora, a beleza daquelas joias As crianças estavam verdadeiramente apalermadas, não sabendo se haviam de chorar pela morte do pai, que  era bruto, lhes batia e lhes dava fome, ou se haviam de dar graças a deus por aquele momento que as transformava em pessoas importantes, com a melhor roupa, que só podiam usar nos domingos e dias de festa e que, por causa do óbito, lhe foi imposto que usassem também naquela quarta feira.
No fim do enterro, a Manela ficou com os garotos junto ao covacho, até que eles vissem que o pai era mesmo enterrado, até à última pazada e que era impossível ele voltar para lhes bater. Entregou os garotos à Isaura, que se foi com eles e ficou ali, uns cinco minutos, como se estivesse a meditar, naquele jeito tão próprio das catequistas, com as duas mãos na cara, vendo apenas através do intervalo dos dedos. Depois de arrumar as cordas e de entregar as ferragens ao António Ginete, que era o nome do coveiro, o qual para além da taxa do covacho recebia por isso uma gratificaçãozinha,  o senhor Joaquim Camelo dirigiu-se à Manuela:
É a vida menina. Uma tristeza. Não me vão pagar, mas temos que ser uns para os outros. Como é  que esta desgraçada agora se vai ver com tantos filhos?
O povo ajuda, Senhor Joaquim. Temos que nos ajudar uns aos outros, que nem sequer casa do povo temos. Mas é uma tristeza.
Olha, e tu o que é que fazes?
Passo o tempo em casa. Os meus pais não tem posses. Gostava muito de estudar, mas não dá. Ajudo, costuro e entretenho-me na catequese, que esta aldeia não tem mais nada que se veja. Lá fazemos umas récitas de vez em quando, há um bailarico de quinze em quinze dias e mais nada.
 Olha cachopa, eu estou a precisar de uma rapariga que me organize os papéis, que me receba os telefonemas e que escreva umas cartas aos fornecedores. Se tu quiseres… Pago-te trezentos escudos por mês…
Ela nem olhou para traz. Eu quero, vamos ver é se os meus pais me deixam. E logo foi para casa para explicar à família o grande projeto.
O pai foi o primeiro a dar o seu assentimento. O senhor Joaquim Camelo é um homem bom e eu acho que deves aceitar. É um princípio de vida, para quem não tem nada que fazer, a não ser enfiar-se nesta miséria da lavoura. Vai filha, vai com deus. A mãe não era, porém, da mesma opinião. O que tu deves é arranjar um namorado sério e trabalhador, que te ponha por conta e tenha posses para te deixar em casa a criar os meus netos. Esse Joaquim pode ser muito boa pessoa, mas não me inspira confiança. E tu já sabes: se ficas com defeito, ninguém te quer.
E ela foi e como se há de ver ficou com defeito não passaram três meses, mas nunca ninguém soube disso, porque o patrão ajeitou as coisas, para que nada se soubesse, para bem de todos, inclusive do seu futuro marido.
O Joaquim colocou-a numa redoma envidraçada, que já ali existia, há muito tempo a um canto do armazém, no lugar que ele ocupava de vez em quando, de onde se vê tudo o que se passa e se alcança até a porta, por onde alguém pode fazer entrar ou sair a mercadoria.
Ensinou-a, logo nos primeiros dias, a cocar o que se passava no espaço, a desconfiar, a ver quem chegava e quem partia e a conferir os canhotos dos blocos de papel em que os empregados anotavam as encomendas.
No segundo dia tirou um pano de cima de uma velha máquina de escrever, da marca remington, ensinando-a como se colocava o papel, que era a única operação que ele sabia fazer,  dizendo-lhe: agora tens que treinar a escrever nisso. Eu não sei e ninguém sabe, mas os tempos mudaram e  tens que aprender como se fazem cartas à máquina. Toda a gente me escreve à máquina e eu acho que se justifica que eu lhes escreva à máquina. Ela aprendeu num instante e passados uns  quinze dias já sabia até o paleio que se usa, começando pelos excelentíssimos senhores, mesmo que fosse a carta dirigida a um pobretana qualquer, sobretudo se ele fosse devedor, e acabando com de vossa excelência, atenta e obrigada.
Passados uns dois meses, Joaquim Camelo ensinou-a a abrir o cofre, que era de segredo, e a organizar o dinheiro que era recebido e que deveria ser guardado ali, pois que ele não era homem de trabalhar com bancos. Nesse dia, já toda a gente tinha saído, pôs-lhe a mão no ombro e disse-lhe: passas a ser a guarda da minha fortuna, o que a deixou muito orgulhosa, ao ponto de ir contar aos pais aquela inexcedível manifestação de confiança. A partir daquele dia era ela quem tomava conta de tudo, ficando combinado que se acertavam as contas à sexta-feira. Isto aconteceu a meio da semana e quando chegou a sexta-feira, Manuela disse-lhe: oh senhor Joaquim, temos que conferir o dinheiro, respondendo-lhe ele que não valia a pena, que continuasse a fazer o trabalho, fazendo-se a conferência na sexta-feira seguinte.
Nessa sexta feira Manuela teve um pensamento premonitório e avisou a mãe de que chegaria mais tarde. É o dia de conferir as contas, que são de duas semanas; de certeza que não conseguimos fazer isso em duas horas. Não se preocupe que o senhor Joaquim vem-me por em casa, se der para o tarde. E deu mesmo.
Começaram às sete e meia da noite. Manuela tirou todo o dinheiro do cofre, mais os dois maços de talões, um de uma semana e outro da outra. Puseram duas cadeiras uma ao lado da outra e o senhor Joaquim começou por fazer um reparo:
Olha Manuela, não é assim que se arrumam as notas. Têm que ficar com a cabeça para o mesmo lado e em grupos de dez ou vinte, ficando nos grupos de dez as que têm 1 e em grupos de 20 as que têm 5.
Ela não percebeu que o 1 era um algarismo de cem ou mil, como o 5 o era de cinquenta, quinhentos ou cinco mil. Enquanto ela ia arrumando as notas, o senhor Joaquim ia conferindo os respetivos movimentos, pelo que, apenas por uma questão de conforto, lhe pôs a mão em cima da perna direita, primeiro sem nenhuma pressão ou movimento, passando, segundos depois a acariciá-la, com a mão para baixo e para cima, todavia por cima da roupa e ela sem dizer nada, enquanto arrumava as notas.
O senhor Joaquim estava sentado à direita da Manuela. Passado um bocadinho, rodou ligeiramente a sua cadeira para a esquerda, não mais de quinze ou vinte graus e trocou a mão que estava a usar, que era a esquerda, substituindo-a pela direita, que lhe meteu debaixo da saia, continuando o mesmo tipo de movimentos. Aí, ela começou a reagir, abrindo suavemente as pernas e avançando para a frente, tudo enquanto continuava a arrumar as notas, sem dizer uma palavra. Como se a tivessem acelerado começou a contar e a arrumar as notas com mais velocidade, deixando o patrão na dúvida acerca do que ela desejava. Não é para ir para casa que ela está com esta pressa, porque se fosse já se tinha levantado, pensou para consigo, antes de juntar à tarefa um novo movimento, que consistia e lhe colocar a mão esquerda sobre o pescoço, enquanto a direita mergulhava no húmido socalco de Manuela. Quando ela contou a última nota, que era uma de 500, ele puxou-lhe a cabeça e encostou-lhe a boca, que ela sugou com sofreguidão, como se o desejasse há muito tempo.
Depois disso foi o que foi e que, por pudor não se conta aqui, porque isto não um livro de erotismo e o cronista não quer que se  masturbem enquanto o vão lendo.
Oh senhor Joaquim, não fique a pensar mal de mim que eu sou uma mulher séria – disse-lhe Manuela, no fim de tudo, com um olhar regalado.
Claro que não fico menina. Também não foi minha intenção.
E passou a ser assim todas as sextas feiras, exceto na semana santa em que, por ser feriado, se contou o dinheiro na quinta, respeitando-se, porém, os complementos do costume, na forma que era devida a um e a outra.
Num belo dia, mais de três anos depois,  disse-lhe o senhor Joaquim:
Olha Manela, eu quero continuar tudo como está, mas eu não sou homem para ti. Tens que arranjar um namorado de futuro, acho que te devias achegar ao Francisco, que é um homem sério e de bons princípios. Se me acontecer alguma coisa, vocês tomam conta disto. Claro que me vai custar pensar que te reparto com alguém… Mas eu tenho que pensar também no teu futuro.
Razão tinha o pai que, naquele dia do enterro e da oferta de trabalho havia sentenciado que o senhor Joaquim Camelo era mesmo boa pessoa. Num primeiro momento nem respondeu ao que lhe disse o Joaquim. Continuou a contar as notas e a repetir, por completo o ritual da sexta feira, mas, de vez em quando também lhe apetecia às terças e às quintas ou às segundas e às quartas. Todas as outras moçoilas, da sua companhia, não tinham essa necessidade porque eram virgens e ela  apenas o aparentava, mas, precisamente por isso tinha necessidades que elas não tinham. Num belo dia, quando se encontrava sozinha no seu leito, conclui que deveria aceitar a proposta de Joaquim.
Ao outro dia começou a olhar para o Francisco daquela forma especial que as mulheres têm quando querem filar os homens. Numa certa terça-feira disse: Francisco, tens que me ajudar a conferir os talões das compras das duas últimas semanas, pois que há um erro que eu não consigo encontrar e ele respondeu que sim. Preparou tudo, como era costume com o senhor Joaquim e sentou-o no lugar que o senhor Joaquim ocupava no primeiro dia, porque depois desse nunca mais foi assim, já que iam diretos ao assunto. Não me dá certo o valor dos talões com o do dinheiro, faltam quinhentos e vinte escudos. E o Francisco, que é um homem sério e não ganhava mais do que isso em todo o mês, ficou a pensar que alguém julgava, sobretudo ela,  que tinha sido ele a ficar com a diferença. Disse-lhe: estás a pensar que eu roubei? As minhas contas foram sempre boas. Tens alguma coisa contra mim?  Nem penses nisso Francisco; não sei se já reparaste, mas eu gosto muito de ti; acho que és o homem da minha vida. Nisto, agarrou-se-lhe ao pescoço e beijou-o intensamente, colocando-o ao rubro. Soltou-lhe a desconfiança e foi tudo muito rápido. No fim, Francisco estava tinto de sangue, porque ela calculara tudo para aquele dia. Recomposta, chorou-lhe no ombro, lamentando o desaire da perda da virgindade e jurando-lhe amor para a toda a vida, o que o deixou assarapantado, porque não estava a contar com semelhante coisa.
Depois do intervalo conferiram as contas, que batiam certo até ao último centavo. Começaram a sair juntos, ele a acompanhá-la a casa, montados cada um na sua bicicleta, a passear no campo, ao fim da tarde nos dias de verão, sem prejuízo das sagradas sextas feitas, sempre dedicadas ao patrão, sem que Francisco desconfiasse do que quer que fosse. Até que o senhor Joaquim Camelo, a quem ela contara tudo, um dia os chamou e lhes disse com ar solene:
 Já sei que vocês andam a namorar às  escondidas. Não precisam, pois têm a minha bênção. A j. camelo & companhia limitada crescerá ainda mais se vocês unirem esforços para a fazer crescer. Como prenda, ofereço-vos cinco por cento do que conseguirem vender por atacado. E ficam com mais dois e meio por cento para dar a quem vos facilitar as vendas, por exemplo aos que fazem as compras nas câmaras, na tropa, nas empresas de construção. Agora organizem-se como melhor entenderem.
A profecia cumpriu-se e a A j. camelo & companhia limitada cresceu como ninguém podia imaginar que crescesse. Manuela e Francisco casaram um ano depois, já ela ia grávida, sem saber bem se o filho, o Herculano,  era do Francisco ou do senhor Joaquim, concluindo mais tarde, para si própria, que pelas parecenças era do patrão, sem que, porém, o marido tivesse percebido algum sinal, até porque a segunda filha, a Luisinha, era a fotocópia do irmão, o que, naturalmente afastava qualquer suspeita.
Manuela tinha-se transformado numa empresária, com o apoio do senhor Joaquim, sempre presente, especialmente  nas sextas feiras ao fim do dia. Vendia à câmara tudo o que ela precisava, desde camionetas de areia e de cimento até ao mobiliário mais diverso e, mais tarde, teve até a oportunidade de criar uma pequena empresa de construção, a j. camelo construções limitada que, sempre que era preciso fazia as obras, tudo porque o engenheiro Luis Roxo era padrinho da Luisinha e ela lhe dava, por todas as operações feitas com a câmara, dois e meio por cento, ganhando, como combinado, os cinco por cento.
A certa altura Manuela chegou à conclusão de que poderia ganhar mais se somasse os seus cinco por cento aos dois e meio por cento do engenheiro Luis Roxo e se dividissem a verba ao meio, na condição de ele espalhar o esquema às outras câmaras do distrito. Não tens que somar nada e dividir, disse-lhe o senhor Joaquim. Dás-lhe os mesmos dois e meio por cento, que ele ganha aqui e dás-lhe mais dois e meio por cento para ele dar aos colegas; e  tu ficas com dois e meio por cento, sem fazer nada. E assim foi. Um sucesso negocial, com valores ridículos, mas não podia deixar de ser assim, porque tudo aconteceu no tempo em que as coisas eram tabeladas e as margens de comercialização muito baixas.
Quando se realizaram as primeiras eleições livres, Manuela tinha apenas vinte e oito anos mas, pela sua experiência, que todos já reconheciam, porque todos sem exceção lhe atribuíam o milagre do crescimento da j. camelo & companhia limitada, do qual o senhor Joaquim Camelo revelava publicamente o orgulho que lhe enchia o peito, era, sem dúvida, a pessoa mais qualificada para ocupar a presidência da câmara. Foi eleita com mais de oitenta por cento dos votos e por lá ficou, porém sem abandonar, como ela dizia, o apoio à empresa, na qual continuou a comparecer todas as sextas feiras, ao fim da tarde, até que o senhor Joaquim Camelo sofreu uma trombose que o derreou e que colocou Francisco à frente dos negócios.
Antes de morrer, o que aconteceu poucos meses depois desse incidente, o senhor Joaquim assinou, conscientemente, não se vá pensar o contrário porque todas eram pessoas sérias, uma escritura em que passava oitenta por cento do capital das suas sociedades para o Francisco e a Manuela, na condição de os lucros serem distribuídos na proporção de cinquenta por cento para ele e de cinquenta por cento para o casal enquanto ele fosse vivo e por mais cinco anos. Nessa escritura ficou estabelecido, por expressa vontade do senhor Joaquim, que os que lhe sucedessem não teriam direito à gerência nem à administração, se entretanto as sociedades se transformassem em anónimas, como foi expressamente aprovado, por unanimidade, na mesma data. A futura viúva, de quem ele se fartara há muito, merecia uma pensão, mas não mais do que isso, e os dois filhos eram, como ele dizia, uns estoira albardas, que não valem a água que bebem e que dariam cabo de tudo se as empresas não ficassem em boas mãos.
Manuela candidatou-se como uma empresária de sucesso, como na realidade era, prometendo trazer para a câmara o que aprendeu na gestão privada e aplicar na dita o mesmo modelo que conduziu ao crescimento da j. camelo & companhia limitada, no que todo o eleitorado concordou, a ver pela elevada percentagem dos votos que lhe deram.
A primeira iniciativa que tomou, invocando a qualidade de antiga catequista, na qual radica, verdadeiramente, a origem do seu sucesso, foi a de proceder à reparação de todos os templos do concelho, operação que, pela natureza, deixou contente todo o clero e, pela dimensão, mereceu o apoio do governo civil, com vantagens óbvias para todos. Depois pôs-se a arranjar caminhos e estradas, deixando tudo impecável, como nunca se vira antes. E a j. camelo & companhia limitada continuava a crescer, primeiro ali e nos concelhos vizinhos e depois em todo o país, como se houvesse uma mão invisível que tocasse para a frente. Aquelas percentagens de miséria, os tais dois e meio por cento e os cinco por cento, multiplicaram-se por quatro passando respetivamente a dez por cento e vinte por cento, numa afirmação de justiça social indiscutível.
Manuela Chinchinim foi várias vezes deputada, foi mesmo ministra das obras públicas, mas não há nada que a encante mais do que ser presidente da pequena câmara de Algerondim, não só porque os nomes, como ela diz, rimam como se a própria fosse um verso de um soneto, mas porque dali pode ver melhor o país que tem plantado aos seus pés.
Pelo seu luxuoso gabinete, que substituiu a indecorosa espelunca do dr. António Gonçalves, nomeado pelo Salazar, mas a quem todo o povo tinha muito respeito, ao ponto de a nova câmara lhe dar um nome de rua, com direito a um busto na praceta, passam deputados, autarcas de todo o país, empresários de construção civil e de empresas desportivas, ministros, como se ela tivesse segredos que ninguém tem ou fosse uma milagreira, como o povo entende que é. A verdade é que tem ajudado muita gente, mesmo muita, não se sabendo que ajuda é essa e que ensinamentos lhes dá, mas verificando-se, porque isso se vê a olho nu, que passado pouco tempo andam com outras roupas, mudam de carro, divorciam-se e apresentam sinais exteriores de riqueza que nunca lhes viram antes.
O Francisco deixou de o ser, para passar a ser o dr. Francisco Alves, apesar de ter apenas a quarta classe. Preside agora ao conselho de administração da holding j. camelo & companhia s.a., que é uma companhia incontornável em todas as áreas, desde a construção civil às telecomunicações e à energia, passando pela área financeira. Ele é, para muitos, a demonstração inequívoca de que por detrás de um grande homem está sempre uma grande mulher.
Muita gente tem, ao longo das últimas décadas, tentado imitar a Dr.ª Manuela Chinchinim, fazendo-o, porém, com tamanha inabilidade que, logo nos primeiros passos os denunciam como corruptos, quando, na realidade, eles não são mais do que candidatos ao sucesso. Este país de gente invejosa não tolera isso. Venera os que têm sucesso mas não admite que outros o repitam.
Já dizia o eterno Pessoa que ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranoico com o delírio das grandezas. Por isso mesmo, o segredo não está em que alguém se ponha ao espelho para se vangloriar a si próprio, mas em que  se fantasie de tal modo que possa ser admirado pelos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade de um estadista e a razão de sucesso de todos eles, com especial relevância para o dr. Diógenes Boavida, que agora nos governa. Não fosse assim, nenhum deles chegaria aonde chegou, com a conjugação dessas duas regras.
Está tudo isso e ainda mais no livro do desassossego. Depois é a simples engrenagem a funcionar. A experiência direta é o subterfúgio, ou o esconderijo, daqueles que são desprovidos de imaginação. Os homens de ação são os escravos dos homens de entendimento. As pessoas não valem senão na interpretação delas. Uns criam as coisas para que os outros, transmudando-as em significação as tornem vidas.
Depois de tantas histórias, de tantas realidades e de tantas contradições não restava a Ricardo outro caminho que não fosse aceitar montar o cavalo que  ali passava ao lado para que ele fosse protagonista da história com H.
Tantos o fizeram, pensava ele para si próprio, como quem se vê obrigado a lançar ao lixo todo o passado, ainda por cima um passado de que ele tanto gostara e de que tanto se orgulhava, lastimando apenas, agora, não poder eliminá-lo da memória dos outros.
Que diriam eles quando, perante a sua importância, ressuscitassem os recortes de jornais, as fotos de todo o mundo, as entrevistas em que está todo o contrário do que agora é?
Não, claro que nada disso existiu. E se tivesse existido deixaria de existir, como acontece por regra a quem ocupa um espaço no tablado do poder. Aquele falou isto, o outro vai falar? Que importa? Tudo será mentira, como já foi com o próprio Diógenes Boavida e com todos os demais políticos de quem se falaram coisas negativas que, por mais documentadas que estivessem, sempre viraram mentiras.
Ele sabia que o pai, Carlos Benjamim do Ó, não tinha assassinado e tinha quase a certeza de que fora mesmo o Ricardo Cabanão quem, num ato de desespero disparou sobre o Gorgel. Ainda bem que o outro Ricardo, que era um homem sério e que, por isso mesmo se suicidou, pois de outro modo haveria de passar por um horrendo mentiroso, sem vergonha para atacar o herói nacional.
Ele  sabia que o pai, em boa verdade, nunca fora um defensor dos direitos das demais espécies, por mais ternura que tivesse pela galinhas e pelas ovelhas, que com eles viviam em família, pela simples razão de que era assim nos tempos da pobreza. Mas não ousava, não podia ousar, voltar-se contra os ventos da história.
Sabia também que toda a política agrícola que deixou os campos em pousio mais não serviu que não fosse para erguer sobre os antigos lavradores um novo poder, em que pautam as grandes superfícies, afinal os maiores apoiantes da revolução, porque a libertação das espécies não humanas potenciava um fabuloso negócio de tecidos clonados, de que esses novos barões são os principais ganhadores.
Entendia ainda que toda esta revolução, com tamanha multiplicação de cidadãos era um engenho fantástico para salvar um sistema financeiro em ruínas. E o que fazer? Lutar contra isso tudo para nada, apenas por um sonho, como um dom quixote luso?
Não, não valia a pena, como agora melhor ensinava seu pai, com a sabedoria acumulada na cadeia.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A prisão de Carlos Benjamim do Ó

Tudo aquilo lhe foi dito com solenidade e desprezo, quase tanto como o que lhe manifestou o cabo da guarda, quando lhe interrompeu a monda e lhe disse de pistola apontada, entrega-te, assassino, que estás preso. Nunca o olhara com bons olhos desde o dia em que, há mais de trinta anos, era o cabo um miúdo, ainda não era cabo, mas já estava naquele posto, o multou por não trazer uma luz consigo, num daqueles dias de inverno, em que fecha cedo o sol e a noite corre mais que o ronceiro andar de uma junta de bois puxando uma carrada de mato. Foram na altura os cem escudos que Carlos do Ó destinava ao médico, numa avença atrasada e tão precisa naquele dia em que sua filha Margarida ardia em febre que resistia já a todos os chás e ao tubo de veganine que, mesmo sem receita, comprava na botica. Nunca mais o conseguiu olhar de frente, ao cabo. E agora tudo lhe parecia uma vingança, uma traição, tal e qual aquela de multar, por falta de uma vela, um homem que trabalha pela noite dentro, fiando, porém agora mais fino que lhe chamava assassino sem dizer porquê. A voz, a tal voz, calou-se agora por momentos, deixando Carlos a poder pensar no guarda e no que se passou depois. Seu malandro, dizia ele, mata-se assim um homem à queima-roupa? Devíamos era fazer-te o mesmo já e pendurar-te aí numa árvore, que era o que tu merecias. Um homem tão bom, com dois filhinhos para criar, um companheirão de tantas patuscadas, um homem da família da autoridade… Faz-se uma coisa dessas, meu patife?

Carlos não respondeu a nenhum dos ditos, limitando-se a ouvi-los como se os outros estivessem loucos ou viessem para fazer uma vingança qualquer. Ataram-lhe as mãos com uma corda em jeito de algemas, por falta de verba para estas, e mandaram-no ir à frente, dando-lhe, de vez em quando um pontapé, enquanto o insultavam. Sentiu-se, sem saber porquê, um troféu de caça e sentiu-o ainda mais quando os guardas se desviaram do caminho para a vila, fazendo-o retroceder ao centro da aldeia, onde duas dezenas de pessoas, juntas num magote, lhe gritaram assassino, assassino. Estava lá o seu primo António, com quem ainda ontem repartira um pato bravo que apanhara na charca. Estavam o padre e o regedor, mais comedidos mas, ainda assim, com olhares de desprezo e censura. Este último esteve a dois passos de si, segredando o cabo qualquer coisa que não entendeu e a que o cabo deu um sinal de concordância. Estava até, mais escondida, sua mulher, companheira de quase cinquenta anos, num basbaque, que não dava para entender de que lado se pranteava, sendo provável, que pela sua inação e pelo modo como o olhou, de revés antes de pôr os olhos no chão, estivesse do lado dos outros.

Quando chegaram à vila de Gonzalim depois de terem calcorreado sete quilómetros, fora os do desvio do sítio da mosqueira até à aldeia de Entremuros, já lá chegara a notícia de que a guarda tinha preso o assassino. À porta do posto, situado na cocheira de uma antiga casa solarenga, agora transformada em fábrica de colchões, havia outro magote de pessoas que repetiram as mesmas palavras como se tudo aquilo fosse um ritual estranho ou a preparação de um exorcismo em que Carlos do Ó houvesse de ser queimado.

Mal entrou, deu-lhe o sargento Xavier Antunes, o Xá, um murro no estômago vazio, que lhe soou a seco, como se a parede da frente batesse na parede de trás.

Seu assassino, seu malandro… Porque é que mataste o homem? Que mal te fez ele?

Mas eu não matei homem nenhum. Qual homem? De que é que estão a falar?

Sabes muito bem que mataste. Temos as provas todas. Viram-te a matá-lo e até já descobrimos a arma. Vá lá, é melhor confessares e assinares este papel em que está já tudo escrito. É melhor teres respeito pelo nosso trabalho, que estivemos a adiantar o serviço. E ter respeito pelo senhor juiz, que estava na praia e teve de vir à vila por causa de ti. Vá, assina…

Mas quem é o homem que foi morto? Eu não sei de nada… E novo murro no estômago colou-lhe de novo a parede da frente à parede de trás.

Talvez isto te faça lembrar. Não vês que estás a ser burro, que nós sabemos tudo, que toda a gente já sabe que foste tu quem matou? Tu premeditaste tudo com mais de vinte e quatro horas de antecedência. Ameaçaste o homem que havias de matá-lo, já não te lembras?

Que ele foi bem morto foi, por alguém a quem fez mal, mas eu não fui.

Claro que foste tu, quem podia ser, mesmo ali ao pé da tua casa, às cinco e meia da manhã?

Mas o que é que ele andava a fazer lá às cinco e meia da manhã quando os funcionários pegam às 9? Eu saí de casa a essa hora, saí, mas não vi nada.

Mas viram-te sair; e viram-te matar o homem. Não tens vergonha de ser um assassino, um homem da tua idade? Vá lá, uma fraqueza qualquer pessoa tem, só tens a ganhar se confessares. Ninguém vai acreditar em ti se disseres que não foste tu. Toda a gente sabe que os fiscais foram a tua casa e que os ameaçaste de morte. És um valentão para fazer as ameaças, até teve de ir lá a guarda para trazer o gado, e já não és valente para confessar o que fizeste? És um valentão para dizer que matas e já não és valente para assumir que mataste? Só tens a ganhar se confessares. O juiz até é uma pessoa muito humana; talvez que atenta a tua idade até te deixe sair com uma fiança, porque não? Ai não confessas? Então vais ter de ir ao tratamento para ver se te lembras melhor…

Meteram-no numa jaula de dois metros por dois, que em tempos teve como habitante um sagui, trazido da Guiné pelo filho da anterior locatária, e esperaram que, com o calor que estava, lhe desse a sede. Não, é um equívoco, pensava. Há um engano qualquer; lá que me apeteceu matar o homem apeteceu. Roubarem-me as galinhas e o gado, não se faz, mesmo que haja uma lei. Façam isso quando eu morrer, mas agora não, deixem-me ter as minhas coisas, bem não são coisas, os meus animais que eu trato como fossem da minha família, pensava, ao mesmo tempo que se afastava daquela cena que não compreendia. Raio de azar: matarem o fiscal do Ministério da agricultura mesmo ali ao pé da porta e depois da discussão de há dois dias. Claro que toda a gente está a pensar que fui eu quem matou; mas não fui, não. E agora, Carlos?. Se toda a gente está a pensar que foste tu quem matou e se não aparece quem matou na realidade vais ser tu o assassino? Mas quem poderá ser o assassino? Não, o homem não tinha inimigos na aldeia, bem pelo contrário. Aliás até se constava que ele fechava os olhos e que deixava as pessoas terem criação, claro, desde que não seja muita e que seja só para os gastos da casa.

Desde que os franceses e os espanhóis não se queixem que os camponeses andam a vender frangos e ovos não há problemas. Nós temos as nossas obrigações e toda a gente sabe que é proibido criar porcos, ovelhas, galinhas, patos e perus em sua casa. Mas nós até gostamos mais de galinhas do campo do que das do supermercado e, portanto, desde que não dê nas vistas, não há problemas. Também é proibido fazer bagaço e, claro, toda a gente faz. E nós sabemos quem faz, também gostamos de bagaço, e não há problemas. Os problemas são os abusos. Se criarem umas galinhas e umas cabras para comer com os amigos, nós somos amigos, e não há problemas. Os problemas vêm se vocês quiserem vender.

Os estabelecimentos pagam os seus impostos. Têm que se respeitar. Há empresas que se dedicam à criação de gado e se toda a gente criasse gado no campo, como vocês fazem, ninguém comprava os produtos dessas empresas. Claro, os impostos, o irc e o iva, como é que o estado pagava aos funcionários? Já viram os prejuízos que davam ao continente? E ao pão de açúcar? E até ao lidl, que é aquele supermercado onde vão os ucranianos, que são consumidores inveterados de carne de porco? O que era se as pessoas continuassem a matar os porquinhos em casa? O ministério da agricultura existe para proteger as empresas e por isso não podemos fechar os olhos a tudo, mesmo que a galinha do campo seja melhor do que a outra, percebem? Com a cachaça é a mesma coisa, perceberam? Se for para dar um tragozinho, uma garrafinha de litro ou mesmo um garrafão de cinco litros, não há problemas, mas a cachaça é um combustível e se as pessoas descobrem que se pode misturar na gasolina, nas motas, nos motores de sulfatar, já viram o problema que isso vai dar, que seria muito semelhante ao de permitir que vocês fizessem charutos com as folhas de tabaco, que é o mesmo que dizer que as mesmas têm que ser rigorosamente contadas? Já diz o ditado que quem quer festa sua-lhe a testa e, sendo assim, é bom que todos compreendam que o tempo do botas já passou e que se querem progresso têm que o pagar, que isso de cada um ter o seu quintalinho, a sua pinga, as suas hortaliças já foi chão que deu uvas e agora é impossível. Também tinham umas estradas de merda, toda a gente desdentada, mulheres com bigodes e mamas descaídas e tudo isso vai ter que mudar, para nascer um povo novo, mais alto e mais conforme com os padrões da União; mas alguém tem que pagar o preço, sendo certo que para isso, para tudo isso, é preciso dinheiro que só pode vir dos impostos.

Os luxos pagam-se e é por isso que quem fuma paga, quem bebe paga e quem quiser festa tem que suar, fazer alguma coisinha e deixar de fazer o que estorva. Vão trabalhar prá estrada uns, prás caixas dos supermercados outros, outros, por enquanto pró estado, como estes fiscais do ministério da agricultura, mas até para esses se vai acabar a mama um dia, que os computadores são mais fiéis e mais seguros. Tem que se começar por algum lado e, como é normal, começa-se por onde os pontos são mais fracos.

Enquanto ouvia este discurso na gaiola onde antes viveu um sagui, Carlos do Ó, perguntava-se por que razão os fiscais tinham sido tão rigorosos consigo, ao ponto de não lhe deixarem ficar uma única ave de capoeira nem uma única rês, das que se passeavam por sua casa como se fossem da família, na mais ampla das liberdades, só regressando à noite, como se estivessem ensinadas, ao cortelho no fundo do pátio. Foi então que ouviu um balido que lhe era familiar e logo adivinhou ser da ovelha malhada – Rita, minha querida Rita... - que estava presa como ele, precisamente ali ao lado a menos de dois metros, num curral que os guardas haviam recuperado, para apoio à fiscalização do ministério da agricultura. Respondeu-lhe no mesmo tom, como fazia lá em casa, voltando ela a responder como se o entendesse e estranhasse a sua presença ali ou pensasse que ele a iria libertar, pois nunca aquela criatura soubera antes o que era ser prisioneira.

O que é...

A Idade do Galo é o meu primeiro romance, publicado no Smashwords.
Por sugestão de alguns amigos, publico aqui alguns excertos.
Boa leitura.
E obrigado pelas críticas.