segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A prisão de Carlos Benjamim do Ó

Tudo aquilo lhe foi dito com solenidade e desprezo, quase tanto como o que lhe manifestou o cabo da guarda, quando lhe interrompeu a monda e lhe disse de pistola apontada, entrega-te, assassino, que estás preso. Nunca o olhara com bons olhos desde o dia em que, há mais de trinta anos, era o cabo um miúdo, ainda não era cabo, mas já estava naquele posto, o multou por não trazer uma luz consigo, num daqueles dias de inverno, em que fecha cedo o sol e a noite corre mais que o ronceiro andar de uma junta de bois puxando uma carrada de mato. Foram na altura os cem escudos que Carlos do Ó destinava ao médico, numa avença atrasada e tão precisa naquele dia em que sua filha Margarida ardia em febre que resistia já a todos os chás e ao tubo de veganine que, mesmo sem receita, comprava na botica. Nunca mais o conseguiu olhar de frente, ao cabo. E agora tudo lhe parecia uma vingança, uma traição, tal e qual aquela de multar, por falta de uma vela, um homem que trabalha pela noite dentro, fiando, porém agora mais fino que lhe chamava assassino sem dizer porquê. A voz, a tal voz, calou-se agora por momentos, deixando Carlos a poder pensar no guarda e no que se passou depois. Seu malandro, dizia ele, mata-se assim um homem à queima-roupa? Devíamos era fazer-te o mesmo já e pendurar-te aí numa árvore, que era o que tu merecias. Um homem tão bom, com dois filhinhos para criar, um companheirão de tantas patuscadas, um homem da família da autoridade… Faz-se uma coisa dessas, meu patife?

Carlos não respondeu a nenhum dos ditos, limitando-se a ouvi-los como se os outros estivessem loucos ou viessem para fazer uma vingança qualquer. Ataram-lhe as mãos com uma corda em jeito de algemas, por falta de verba para estas, e mandaram-no ir à frente, dando-lhe, de vez em quando um pontapé, enquanto o insultavam. Sentiu-se, sem saber porquê, um troféu de caça e sentiu-o ainda mais quando os guardas se desviaram do caminho para a vila, fazendo-o retroceder ao centro da aldeia, onde duas dezenas de pessoas, juntas num magote, lhe gritaram assassino, assassino. Estava lá o seu primo António, com quem ainda ontem repartira um pato bravo que apanhara na charca. Estavam o padre e o regedor, mais comedidos mas, ainda assim, com olhares de desprezo e censura. Este último esteve a dois passos de si, segredando o cabo qualquer coisa que não entendeu e a que o cabo deu um sinal de concordância. Estava até, mais escondida, sua mulher, companheira de quase cinquenta anos, num basbaque, que não dava para entender de que lado se pranteava, sendo provável, que pela sua inação e pelo modo como o olhou, de revés antes de pôr os olhos no chão, estivesse do lado dos outros.

Quando chegaram à vila de Gonzalim depois de terem calcorreado sete quilómetros, fora os do desvio do sítio da mosqueira até à aldeia de Entremuros, já lá chegara a notícia de que a guarda tinha preso o assassino. À porta do posto, situado na cocheira de uma antiga casa solarenga, agora transformada em fábrica de colchões, havia outro magote de pessoas que repetiram as mesmas palavras como se tudo aquilo fosse um ritual estranho ou a preparação de um exorcismo em que Carlos do Ó houvesse de ser queimado.

Mal entrou, deu-lhe o sargento Xavier Antunes, o Xá, um murro no estômago vazio, que lhe soou a seco, como se a parede da frente batesse na parede de trás.

Seu assassino, seu malandro… Porque é que mataste o homem? Que mal te fez ele?

Mas eu não matei homem nenhum. Qual homem? De que é que estão a falar?

Sabes muito bem que mataste. Temos as provas todas. Viram-te a matá-lo e até já descobrimos a arma. Vá lá, é melhor confessares e assinares este papel em que está já tudo escrito. É melhor teres respeito pelo nosso trabalho, que estivemos a adiantar o serviço. E ter respeito pelo senhor juiz, que estava na praia e teve de vir à vila por causa de ti. Vá, assina…

Mas quem é o homem que foi morto? Eu não sei de nada… E novo murro no estômago colou-lhe de novo a parede da frente à parede de trás.

Talvez isto te faça lembrar. Não vês que estás a ser burro, que nós sabemos tudo, que toda a gente já sabe que foste tu quem matou? Tu premeditaste tudo com mais de vinte e quatro horas de antecedência. Ameaçaste o homem que havias de matá-lo, já não te lembras?

Que ele foi bem morto foi, por alguém a quem fez mal, mas eu não fui.

Claro que foste tu, quem podia ser, mesmo ali ao pé da tua casa, às cinco e meia da manhã?

Mas o que é que ele andava a fazer lá às cinco e meia da manhã quando os funcionários pegam às 9? Eu saí de casa a essa hora, saí, mas não vi nada.

Mas viram-te sair; e viram-te matar o homem. Não tens vergonha de ser um assassino, um homem da tua idade? Vá lá, uma fraqueza qualquer pessoa tem, só tens a ganhar se confessares. Ninguém vai acreditar em ti se disseres que não foste tu. Toda a gente sabe que os fiscais foram a tua casa e que os ameaçaste de morte. És um valentão para fazer as ameaças, até teve de ir lá a guarda para trazer o gado, e já não és valente para confessar o que fizeste? És um valentão para dizer que matas e já não és valente para assumir que mataste? Só tens a ganhar se confessares. O juiz até é uma pessoa muito humana; talvez que atenta a tua idade até te deixe sair com uma fiança, porque não? Ai não confessas? Então vais ter de ir ao tratamento para ver se te lembras melhor…

Meteram-no numa jaula de dois metros por dois, que em tempos teve como habitante um sagui, trazido da Guiné pelo filho da anterior locatária, e esperaram que, com o calor que estava, lhe desse a sede. Não, é um equívoco, pensava. Há um engano qualquer; lá que me apeteceu matar o homem apeteceu. Roubarem-me as galinhas e o gado, não se faz, mesmo que haja uma lei. Façam isso quando eu morrer, mas agora não, deixem-me ter as minhas coisas, bem não são coisas, os meus animais que eu trato como fossem da minha família, pensava, ao mesmo tempo que se afastava daquela cena que não compreendia. Raio de azar: matarem o fiscal do Ministério da agricultura mesmo ali ao pé da porta e depois da discussão de há dois dias. Claro que toda a gente está a pensar que fui eu quem matou; mas não fui, não. E agora, Carlos?. Se toda a gente está a pensar que foste tu quem matou e se não aparece quem matou na realidade vais ser tu o assassino? Mas quem poderá ser o assassino? Não, o homem não tinha inimigos na aldeia, bem pelo contrário. Aliás até se constava que ele fechava os olhos e que deixava as pessoas terem criação, claro, desde que não seja muita e que seja só para os gastos da casa.

Desde que os franceses e os espanhóis não se queixem que os camponeses andam a vender frangos e ovos não há problemas. Nós temos as nossas obrigações e toda a gente sabe que é proibido criar porcos, ovelhas, galinhas, patos e perus em sua casa. Mas nós até gostamos mais de galinhas do campo do que das do supermercado e, portanto, desde que não dê nas vistas, não há problemas. Também é proibido fazer bagaço e, claro, toda a gente faz. E nós sabemos quem faz, também gostamos de bagaço, e não há problemas. Os problemas são os abusos. Se criarem umas galinhas e umas cabras para comer com os amigos, nós somos amigos, e não há problemas. Os problemas vêm se vocês quiserem vender.

Os estabelecimentos pagam os seus impostos. Têm que se respeitar. Há empresas que se dedicam à criação de gado e se toda a gente criasse gado no campo, como vocês fazem, ninguém comprava os produtos dessas empresas. Claro, os impostos, o irc e o iva, como é que o estado pagava aos funcionários? Já viram os prejuízos que davam ao continente? E ao pão de açúcar? E até ao lidl, que é aquele supermercado onde vão os ucranianos, que são consumidores inveterados de carne de porco? O que era se as pessoas continuassem a matar os porquinhos em casa? O ministério da agricultura existe para proteger as empresas e por isso não podemos fechar os olhos a tudo, mesmo que a galinha do campo seja melhor do que a outra, percebem? Com a cachaça é a mesma coisa, perceberam? Se for para dar um tragozinho, uma garrafinha de litro ou mesmo um garrafão de cinco litros, não há problemas, mas a cachaça é um combustível e se as pessoas descobrem que se pode misturar na gasolina, nas motas, nos motores de sulfatar, já viram o problema que isso vai dar, que seria muito semelhante ao de permitir que vocês fizessem charutos com as folhas de tabaco, que é o mesmo que dizer que as mesmas têm que ser rigorosamente contadas? Já diz o ditado que quem quer festa sua-lhe a testa e, sendo assim, é bom que todos compreendam que o tempo do botas já passou e que se querem progresso têm que o pagar, que isso de cada um ter o seu quintalinho, a sua pinga, as suas hortaliças já foi chão que deu uvas e agora é impossível. Também tinham umas estradas de merda, toda a gente desdentada, mulheres com bigodes e mamas descaídas e tudo isso vai ter que mudar, para nascer um povo novo, mais alto e mais conforme com os padrões da União; mas alguém tem que pagar o preço, sendo certo que para isso, para tudo isso, é preciso dinheiro que só pode vir dos impostos.

Os luxos pagam-se e é por isso que quem fuma paga, quem bebe paga e quem quiser festa tem que suar, fazer alguma coisinha e deixar de fazer o que estorva. Vão trabalhar prá estrada uns, prás caixas dos supermercados outros, outros, por enquanto pró estado, como estes fiscais do ministério da agricultura, mas até para esses se vai acabar a mama um dia, que os computadores são mais fiéis e mais seguros. Tem que se começar por algum lado e, como é normal, começa-se por onde os pontos são mais fracos.

Enquanto ouvia este discurso na gaiola onde antes viveu um sagui, Carlos do Ó, perguntava-se por que razão os fiscais tinham sido tão rigorosos consigo, ao ponto de não lhe deixarem ficar uma única ave de capoeira nem uma única rês, das que se passeavam por sua casa como se fossem da família, na mais ampla das liberdades, só regressando à noite, como se estivessem ensinadas, ao cortelho no fundo do pátio. Foi então que ouviu um balido que lhe era familiar e logo adivinhou ser da ovelha malhada – Rita, minha querida Rita... - que estava presa como ele, precisamente ali ao lado a menos de dois metros, num curral que os guardas haviam recuperado, para apoio à fiscalização do ministério da agricultura. Respondeu-lhe no mesmo tom, como fazia lá em casa, voltando ela a responder como se o entendesse e estranhasse a sua presença ali ou pensasse que ele a iria libertar, pois nunca aquela criatura soubera antes o que era ser prisioneira.

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